quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A falácia do currículo enxuto

Tirar filosofia e sociologia do currículo do ensino médio para "torná-lo mais atrativo" afastará ainda mais os jovens da cultura em sua plenitude

A reforma do currículo do ensino médio anunciada por Dilma Rousseff causou apreensão. A presidente deixou nas entrelinhas, em entrevista na TV, a ideia de retirar do currículo a sociologia e a filosofia.
Quem está no trabalho com o ensino e a pesquisa sabe o bem que essas disciplinas trazem aos jovens. Os resultados podem ser mensurados, principalmente, pelo mercado de livros. A procura por obras clássicas pelos jovens aumentou. Há indicadores que mostram que devemos esse feito a essas disciplinas entre aqueles que, em seguida, chegam às universidades.
Em um país como o Brasil, esses resultados não indicam pouca coisa. Mas, e quanto ao resto do que a presidente disse? É possível enxugar o currículo do ensino médio para "torná-lo mais atrativo"?
Antes de qualquer coisa: a escola tem de ser atrativa pelo que oferece, e não pelo que não oferece! Deixar conteúdos já consagrados de fora torna a escola atrativa só para quem não quer estudar.
Não é o currículo enxuto o fator de atração de alunos para a escola básica e, muito menos, é ele que determina que os estudantes nela permaneçam. Não há pesquisa séria que mostre isso. Ao contrário, todas as pesquisas indicam que, se deixamos de lado fatores externos (renda familiar, tempo livre etc.), é a força intelectual e moral do professor que pesa na decisão do estudante em continuar na escola.
Os professores recebem algo em torno de R$ 9 por hora-aula no Brasil. É um número diminuto perto do que vale a hora de trabalho no Brasil fora do magistério, para qualquer profissão que requisita o mesmo tempo de estudo universitário.
Não é possível manter na escola os melhores mestres com esse tipo de remuneração e, se a escola pública paga mal, não estimula a particular a pagar melhor. Resultado: hoje no Brasil não há classe social que possa ver seus filhos em contato com bons mestres.
O valor da hora-aula é o determinante principal na escola brasileira. Tudo já foi tentado para melhorar essa instituição e não deu certo. Só isso ainda não foi modificado.
Metade da população não consome a cultura mais elaborada. O contato do brasileiro com a cultura letrada ainda depende demais da escola --trata-se de uma regra que também vale para a classe média tradicional.
Teatro, cinema, biblioteca e museu são visitados por estudantes enquanto estudantes. Fora da escola, até música ao vivo de qualidade é deixada de lado. As feiras do livro não são mais eventos para o leigo culto. Uma grade curricular enxuta deixará os jovens fora da cultura em sua plenitude.
A presidente Dilma escorregou. Deveria reestruturar melhor seu pensamento e sua fala.
A maior parte dos políticos brasileiros, até os que se dizem envolvidos com projetos educacionais, tendem a negligenciar a formação no âmbito do ensino médio. Desqualificam-no ao insistirem que ele dever ser "técnico". Trata-se de um nível escolar importante e que deve ser democratizado sem que tenhamos que vê-lo pior do que já está. Folha, 19.11.2014.
PAULO GHIRALDELLI, 57, é filósofo, escritor, cartunista e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Direito tem redução inédita de formandos: Número caiu 3%, na primeira queda da década; quantidade de graduados em administração também encolheu

Para o MEC, queda de diplomados é causada pela supervisão da pasta, que fechou vagas em cursos ruins

FLÁVIA FOREQUEDE BRASÍLIA
A queda do número de formandos no ensino superior entre 2012 e o ano passado atingiu os cursos com maior volume de estudantes no país: direito e administração.
Juntas, as graduações respondem por 23% das matrículas em cursos presenciais.
A redução de bacharéis em direito (3%) foi menor do que a média de todos os cursos (5,65%), mas a primeira queda verificada na última década. Em 2012, 97,9 mil estudantes concluíram a graduação. No ano passado, 95 mil.
Em administração, o percentual chegou a 11,86%. O movimento de baixa nesse curso já vinha ocorrendo em anos recentes, mas em menor intensidade.
Entre 2011 e 2012, por exemplo, a queda foi de 0,88% --993 diplomas a menos, em números absolutos. No ano passado, essa diferença foi de 13.199 formandos.
Para Samuel Melo Júnior, doutor em administração, um dos motivos principais é a migração da demanda dos alunos para cursos tecnológicos sobre gestão, de menor duração (média de dois anos) e maior foco.
"Esse profissional atende a uma demanda específica e tem rápida inserção no mercado. São cursos de graduação que o Conselho Federal de Administração já recebe entre os associados", afirma Júnior, também diretor da câmara de formação profissional da entidade.
Há quatro anos, por exemplo, o curso de gestão de recursos humanos havia formado 16,7 mil profissionais. No ano passado, o número aumentou para 26,3 mil.
"Não vemos isso como algo ruim, mas há diferenças entre os formandos. A questão [para explicar a redução] não é de empregabilidade, há muito espaço para o administrador", avalia.
Para o Ministério da Educação, a queda do número de formandos de uma forma geral foi motivada por medidas de supervisão e fiscalização do governo federal, que resultaram em fechamento de vagas ou congelamento de vestibular em cursos considerados de má qualidade.
MEDICINA
Os cursos de medicina tiveram aumento no número de formandos, mas em um ritmo modesto.
No ano passado, a quantidade de novos médicos que entravam no mercado foi de 16.495 --apenas 141 a mais do que em 2012. No período anterior, o incremento foi da ordem de 1.700.
Também houve redução do ritmo de crescimento das matrículas na graduação.
"Esse número era muito alto. O que sempre falamos é que a quantidade de médicos não vai resolver o problema", afirma Mauro Ribeiro, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina.
Na visão da entidade, o problema da distribuição de profissionais pelas regiões do país pode ser resolvido com a criação de uma carreira de Estado para a categoria. Folha, 13.11.2014.

Evolução sofrida


O crescimento sustentado é crucial para tornar a educação um caminho mais promissor de ascensão social


A educação é uma unanimidade nacional. O problema é que não é incomum que o seu debate se resuma a uma questão de vontade (ou à reclamação de uma suposta falta dela entre os políticos).
Por isso, venho tentando empreender uma tarefa arriscada: construir uma narrativa dos avanços e das dificuldades da trajetória brasileira. Um início seguro é olhar os indicadores de desempenho e de esforço.
Quanto ao primeiro, há avanços visíveis nos resultados dos estudantes brasileiros no Pisa (avaliação internacional feita pela OCDE) e no Ideb (indicador do governo federal). Também vem diminuindo a distorção entre idade e série.
Contudo, a evolução é sofrida. Os resultados do mais recente Ideb mostraram que as metas só foram cumpridas para a etapa inicial do ensino fundamental, tendo ficado aquém na etapa final e no ensino médio.
Quanto ao esforço, não há dúvida: é crescente a prioridade da educação pública. O gasto total em relação ao PIB foi de 4,5% em 2005 para 6,4% em 2012, segundo dados oficiais. Quase todo o aumento se deu na educação básica.
Aqui é que a narrativa se complica. O que tem significado no cotidiano escolar esse aumento de recursos? Quais são as dificuldades persistentes e o que avança?
Em qualquer país é demorada a universalização da educação básica. Como o aprendizado também ocorre em casa, é duro fazer as transições, isto é, ensinar aos filhos mais do que seus pais puderam ter na escola. Para isso, recrutar professores entre os mais bem preparados da nação é uma estratégia frutífera.
Mas, num país populoso e tão desigual, a elite é pequena. A escola pública conta com professores oriundos principalmente de classes populares, que tiveram eles mesmos uma formação acidentada.
A professora da UFRJ Daniela Patti, com quem debati esta coluna, destaca que é comum, por exemplo, que professores dos anos iniciais do fundamental tenham falhas de formação para o ensino dos conteúdos de matemática e ciências.
Assim, é chave investir na formação continuada dos profissionais. Por exemplo, a Faculdade de Educação da UFRJ recebeu neste ano verba federal para requalificar educadores de todos os municípios do Rio.
Outra dificuldade é garantir a permanência do estudante na escola, em particular após o fundamental. A partir dos 16 ou 17 anos, há oferta de trabalho, cujas remunerações podem de imediato soar mais recompensadoras que continuar o estudo. Anos depois, tais jovens, que tiveram formação mais longa e melhor que a dos pais, talvez mudem de ideia, percebendo que a formação incompleta limita as chances de progresso.
Por isso, é crucial a oferta da EJA (Educação de Jovens e Adultos). A EJA, porém, tem sofrido com perda de matrículas e falta de prioridade, já que não é avaliada pelo Ideb, algo pelo qual os governos locais têm sido crescentemente cobrados.
O ensino médio sofre ainda de "crise de identidade". Parte dos jovens busca um curso superior, o que exige reforçar, por exemplo, o aprendizado de matemática e ciências. Outra prefere curso técnico, concomitante ou sequencial ao médio regular, que pode ser caminho mais certeiro para a ascensão social. O Pronatec e a expansão das escolas técnicas federais são boas iniciativas. Porém o duplo objetivo dificulta a formatação das políticas públicas.
Há ainda uma multiplicidade de iniciativas, como a expansão da educação infantil, que já atinge quase 80% das crianças de 4 e 5 anos, ou a inclusão de crianças com necessidades especiais, que exige, entre outras ações, formar e contratar intérpretes da Língua Brasileira de Sinais. Isso sem esquecer as iniciativas mais conhecidas, como o Enem e o piso nacional do magistério.
Retomar o crescimento sustentado é crucial para criar perspectivas que tornem a educação um caminho mais promissor de ascensão social. É ele que permitirá elevar os recursos disponíveis por aluno, pois, como proporção do PIB, o gasto do Brasil chegou ao patamar dos ricos.
União, Estados e municípios compartilham dispêndios e responsabilidades num planejamento que deve atender a uma ampla gama de demandas e deficiências. Muita coisa tem sido feita. Mas os ganhos de qualidade, sem descuidar da inclusão educacional, dão-se de geração em geração, exigindo persistência e paciência. Um debate mais bem especificado e pragmático é proveitoso. Folha, 13.11.2014. marcelo.miterhof@gmail.com

Educação como prêmio

Mais de 2 milhões de alunos da rede paulista de ensino acabam de realizar o Saresp, exame que avalia suas habilidades acadêmicas e, de quebra, define quais escolas farão jus ao bônus por desempenho pago pelo governo de São Paulo.

Não é coincidência que, diante da prova, professores fiquem tão ansiosos quanto os estudantes, como mostrou reportagem desta Folha. O prêmio, oferecido às unidades que cumprem suas metas educacionais, pode representar um acréscimo de até 2,9 salários aos rendimentos anuais de docentes e outros funcionários da instituição.
Embora o princípio de recompensar o mérito seja louvável, incentivos monetários para educadores estão entre os mais polêmicos. Sindicatos da categoria tendem a enxergar no mecanismo um artifício para conter salários, enquanto observadores mais liberais veem um estímulo ao esforço individual.
Do ponto de vista dos resultados, pesquisas empíricas indicam um quadro nuançado. Sabe-se de forma inequívoca apenas que o bônus não é uma panaceia; seus efeitos dependem de outras variáveis.
Richard Murnane, da Universidade Harvard, sustenta que esse gênero de ação tende a funcionar quando o desempenho dos alunos é extremamente baixo, mas isso não se repete nos países de melhor performance, como os Estados Unidos. Um estudo sobre o programa adotado em Nova York mostrou até que a bonificação pode ter impacto negativo.
Como o sistema educacional de São Paulo --e do Brasil, de modo geral-- não pode ser catalogado nem mesmo como mediano, políticas de incentivo têm lugar por aqui. Murnane, entretanto, afirma que, para não fracassarem, as ações devem ser bem planejadas.
É necessário reconhecer o risco de respostas disfuncionais, como fazer com que os professores ensinem exclusivamente para o teste, e precaver-se contra elas. Há que levar em conta, ainda, o quanto as notas são influenciadas por fatores alheios à sala de aula, como renda e escolaridade dos pais, quantidade de livros existentes na casa etc.
Entre os poucos estudos sobre o bônus paulista, um deles --o mestrado de Cláudia Hiromi Oshiro, na USP de Ribeirão Preto-- traz evidências de que a ferramenta tem impacto significativo na quarta série (quinto ano), mas não na oitava (nono ano).
Os achados recomendam não só que se dê continuidade à política de incentivos como também que se redobrem os esforços para medir seus efeitos. O país precisa fazer a lição de casa se quiser uma educação melhor como prêmio.
Folha, 13.11.2014.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

MARCELO MITERHOF: Divididos pela educação


A meritocracia é uma ideia traiçoeira; é difícil mostrar que a elite se estabeleceu como tal pelo mérito
O Brasil vive um período conflituoso. Apesar do clima desagradável, é bom que as divergências aflorem. Da última vez que isso ocorreu tão intensamente, acabou na ditadura militar. Porém agora a democracia é mais sólida do que a instalada em 1946.
Assim, é possível explorar temas indigestos, à direita e à esquerda. Por exemplo, no Brasil às vezes parece que é uma deselegância falar da brutal herança da escravidão.
Isso é coisa antiga. No clássico texto "As ideias fora do lugar", o professor Roberto Schwarz trata de uma elite que no século 19 se julgava liberal, mas convivia com o trabalho escravo. Atualmente, a elite brasileira clama por "meritocracia".
Para entender a dificuldade do conceito, vale olhar para as reformas educacionais da primeira metade do século 20. Isso permite ver que a longeva e profunda divisão do país se expressa além dos indicadores de concentração de renda e riqueza.
No início da década de 1930, as chamadas "reformas Francisco Campos" pela primeira vez tentaram nacionalmente atacar distintos níveis de ensino: o superior, o secundário, além do curso comercial. É eloquente que, num país em que cerca de dois terços da população adulta era analfabeta, o único nível deixado de fora tenha sido o primário!
Para piorar, o secundário, que nos moldes atuais começava na segunda fase do ensino fundamental, passou a ter obrigatoriamente um "exame de admissão". Esse foi um mecanismo de restrição ao acesso incompatível com um nível tão básico de educação, que aterrorizou várias gerações de pré-adolescentes até 1971.
A prioridade era propiciar uma educação de mais qualidade a quem tinha uma condição de partida melhor. Nessa época, foram criadas a USP e a Universidade do Brasil (atual UFRJ). Depois, consolidou-se um sistema universitário público de relativa qualidade, porém limitado a um percentual ínfimo da população.
Nos anos 1940, a "reforma Capanema" separou o então secundário entre o ginásio e um novo secundário, chamado de colegial e dividido entre científico e clássico, e enfatizou o ensino profissional, tendo criado o Senai. A industrialização se acelerava, exigindo mão de obra para atividades novas no país.
Nesse contexto, seria razoável que a prioridade fosse alfabetizar e propiciar treinamento voltado às necessidades do setor produtivo. Podendo obter empregos industriais ou urbanos de alta produtividade, uma pessoa recém-emigrada do campo teria expressivos ganhos de renda, o que lhe permitiria propiciar aos seus filhos melhores oportunidades educacionais.
Isso de fato aconteceu, mas foi comum somente entre os descendentes de imigrantes voluntários, que vinham de países menos desiguais e que já tinham uma educação fundamental mais robusta.
A maioria da população, descendente de gerações que estiveram por mais de três séculos sob escravidão, sem nenhum acesso à educação formal, não tinha como competir pelo direito de trilhar uma formação educacional tão restrita.
O problema é que faltou um esforço nacional para universalizar o primário em duas ou três décadas (e posteriormente os níveis seguintes da educação básica), o que só foi ocorrer para valer a partir da Constituição de 1988.
Num país em que a renda per capita não é alta, há uma limitação estrutural de recursos para estabelecer um sistema público de educação. Contudo, houve também falta de priorização. A Constituição de 1934, por exemplo, sob pressão da igreja, deu isenções tributárias às escolas particulares. Hoje, há isenções de IR para gastos com educação. Na prática, isso significa um financiamento público da educação privada, que tende a reforçar a dualidade de acesso ao ensino entre as classes sociais.
Essa dualidade evidencia que a meritocracia é uma ideia traiçoeira. É claro que há mérito em histórias individuais e familiares daqueles que há duas ou três gerações tiveram forte ascensão social. Entretanto, como grupo, é difícil mostrar que a elite nacional se estabeleceu como tal principalmente pelo mérito.
Ao menos no Brasil, o combate à desigualdade --de renda, na educação etc.-- é também uma iniciativa pró-mercado, que visa a estancar o desperdício de talentos e, com isso, aumentar a competição pelas melhores posições em diversos aspectos da vida coletiva. Assim, no futuro a elite nativa poderemos nos considerar algo mais que privilegiados.