quinta-feira, 29 de maio de 2014

Lei da Palmada: Amar e punir

Para punir menos as crianças, deveríamos amá-las menos: quem ama demais castiga demais
Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou e mandou para o Senado a Lei da Palmada, ou Lei Menino Bernardo (em homenagem a Bernardo, assassinado recentemente, aos 11 anos, no RS). A lei fará que pais e educadores não possam recorrer a castigos corporais, mesmo moderados, ainda que sejam na intenção de educar as crianças.
Há argumentos contra: a vontade de não deixar o Estado invadir o espaço privado da família e o receio de que educar se torne mais impossível do que já é.
Eu sou mais a favor da lei do que contra ela, porque a violência é contagiosa: reprimir a violência de pais e educadores talvez quebre o círculo vicioso pelo qual tendemos a reproduzir a violência da qual fomos vítimas.
Mesmo assim, cuidado: o que enlouquece as crianças não são as palmadas, mas as oscilações repentinas do humor dos adultos.
Harold Searles, numa obra (1959) que continua sendo uma referência, descreveu "O Esforço para Tornar o Outro Louco". Ele revelou, por exemplo, as consequências enlouquecedoras de um comportamento dos pais feito de alternâncias rápidas e contínuas entre amor visceral e fúria punitiva.
Essa alternância não é a obra de malucos. Ao contrário, ela é trivial, sobretudo quando os adultos amam muito seus rebentos (ou seus educandos) e, portanto, querem dar tudo (e mais um pouco) para eles: tempo, atenção, esperanças, bens materiais etc.
Repetidamente, o adulto que ama demais explode, porque não aguenta o sacrifício de sua própria vida, que as crianças não lhe pedem, mas que ele se impõe como se as crianças lhe pedissem. Cada explosão, por sua vez, produz culpa e uma nova onda de extrema paixão amorosa. E a coisa recomeça.
Essa alternância de beijos molhados e punições terrificantes mina a confiança da criança no mundo e é muito mais enlouquecedora do que, por exemplo, uma severidade constante, mesmo que ela se expresse em castigos físicos.
De novo, uma criança não enlouquece porque seus pais praticam a palmatória; mas algumas crianças enlouquecem porque os pais passam de apertões e declarações de amor a gritos raivosos e tentativas de estrangulação.
Conclusão: talvez a maior violência contra as crianças não seja a palmada, mas o amor excessivo dos adultos.
Falando em "maior violência contra as crianças", durante a discussão na Câmara, no dia 21, o deputado pastor Eurico disse que a Xuxa cometeu "a maior violência contra as crianças", referindo-se ao fato de que, em 1982, num filme vagamente erótico, Xuxa (então com 18) contracenou com um garoto de 12 anos (cá entre nós: o verdadeiro problema com o filme em questão é que ele não é exatamente uma obra-prima).
Enfim, para o pastor Eurico, a maior violência contra as crianças consiste em deixar um menino de 12 anos acariciar um seio.
Por coincidência, no dia seguinte à patacoada do pastor Eurico, o Ministério Público de São Paulo ratificou um Termo de Ajustamento de Conduta com a Igreja Universal do Reino de Deus para impedir que crianças e adolescentes sejam expostos publicamente, durante cultos ou eventos.
A promotora de Justiça responsável pelo TAC, Fabiola Moran Faloppa, entendeu que são humilhantes ou degradantes as situações em que, no púlpito ou na TV, o ministro religioso revela informações íntimas sobre as crianças (suas doenças, seus abusos sofridos etc.). Concordo com a promotora. E acrescento um comentário.
Há várias razões para expor as crianças à religião. Entre elas, a ideia de que a autoridade divina possa ajudar pais e educadores --a ameaça do inferno substituindo castigos e palmadas. Pode ser. Mas é também possível que, para as crianças, a religião seja mais perigosa do que a palmada ou o vago erotismo de um filme.
O Deus da Bíblia é muito parecido com a mãe ou o pai que enlouquecem seus filhos: ele nos ama a ponto de nos criar e nos entregar as chaves do mundo, mas pode se transformar num castigador absurdamente intransigente (palmadas eternidade adentro).
Em outras palavras, Deus passa do amor à punição com a mesma ferocidade de uma mãe ou de um pai ciclotímicos. Será que os ganhos sociais do ensino precoce da religião compensam seus efeitos enlouquecedores?
Seja como for, se quisermos punir menos as crianças, deveríamos começar por amá-las menos, adotando um novo provérbio: quem ama demais castiga demais. Folha, 29.05.2014. ccalligari@uol.com.br @ccalligaris

terça-feira, 20 de maio de 2014

Escolas ensinam programação de computadores a crianças

Para as crianças menores, aulas parecem um jogo
Por MATT RICHTEL
MILL VALLEY, Califórnia - Jordan Lisle, que tem sete anos e é aluno do 2˚ ano, ficou com sua família num evento escolar no ano passado, depois do horário normal das aulas, cujo objetivo era despertar um interesse novo: a programação de computadores.
"Acho que ele está ficando um pouco para trás", disse sua mãe, Wendy Lisle, explicando por que eles tinham entrado no curso.
O evento é parte de um movimento nacional para o estudo de codificação de computadores, que cresce rápido como a internet.
Desde dezembro, 20 mil professores da pré-escola até o 12º ano introduziram aulas de codificação, segundo a Code.org, grupo apoiado pelo setor de tecnologia e que oferece currículos gratuitos.
Cerca de 30 distritos escolares nos Estados Unidos terão aulas de codificação no próximo ano letivo, em sua maioria no ensino médio, mas também no fundamental.
Em nove Estados, a ciência da computação deixará de ser uma matéria eletiva e terá o mesmo valor de matemática e ciências.
Também são promovidos eventos após o horário das aulas, como o que aconteceu em Mill Valley, onde 70 pais e 90 crianças, da pré-escola até a 5˚ ano, se reuniram em torno de computadores para aprender os elementos fundamentais da lógica de computação.
Hoje, os smartphones e aplicativos estão por toda parte, e as carreiras profissionais em engenharia são cobiçadas. Para muitos pais -especialmente os que vivem aqui, no corredor da tecnologia-, a codificação não é tanto uma atividade extracurricular quanto uma habilidade básica.
A difusão das aulas de codificação é "algo sem precedentes", disse Elliot Soloway, professor de educação e ciência da computação na Universidade de Michigan. "Nunca antes houve um avanço tão veloz na educação."
Mas não está claro se o ensino de ciência da computação na escola primária vai garantir empregos no futuro ou fomentar mais criatividade e pensamento lógico.
E, especialmente no caso das crianças menores, disse Soloway, a atividade é mais como um videogame -melhor que disparar armas simuladas, mas não algo que tenha grandes chances de dar habilidades reais de programação.
Alguns educadores acham preocupante o papel proeminente da indústria tecnológica: grandes empresas de tecnologia e seus fundadores, entre eles Bill Gates e Mark Zuckerberg, do Facebook, contribuíram com US$ 10 milhões (R$ 22,1 milhões) para a Code.org.
A organização paga a formação de professores do secundário para que possam dar aulas mais avançadas de computação. Para os alunos menores, ela desenvolveu um currículo de codificação que casa instrução básica com videogames envolvendo os Angry Birds e zumbis esfomeados.
As aulas não envolvem a linguagem tradicional de computadores. Em vez disso, usam comandos de palavras simples -coisas como "avançar" e "virar à direita"- nos quais as crianças podem clicar para mandar um Angry Bird capturar um porco.
Distritos escolares de todo o país vêm aderindo à tendência. O sistema de ensino público de Chicago espera ter a ciência da computação como matéria obrigatória em seus 187 colégios de ensino médio até 2019 e ter as aulas em 25% de outras escolas. As escolas públicas de Nova York estão treinando professores para dar aulas de ciência da computação em 40 colégios de ensino médio, como preparação para a universidade.
"Há uma demanda grande por essas habilidades, tanto no setor tecnológico quanto em todos os outros", comentou Britt Neuhaus, diretora de projetos especiais no setor de inovação das escolas de Nova York.
A cidade pretende ampliar o ensino da disciplina até 2015 e estuda a possibilidade de levá-lo para as escolas de ensino médio.
O movimento é acompanhado de muito fervor de mercado, do tipo "estamos mudando o mundo", por parte do Vale do Silício.
"Isto é estrategicamente importante para a economia dos Estados Unidos", opinou o empreendedor John Pearce.
Ele e outro empreendedor, Jeff Leane, criaram a organização sem fins lucrativos MV Gate para levar cursos de codificação desenvolvidos pela Code.org para Mill Valley, um subúrbio de alto padrão de San Francisco, do outro lado da ponte Golden Gate.
De acordo com Pearce, os pais adoram a ideia de oferecer a seus filhos alguma coisa produtiva a se fazer com os computadores.
"Temos inúmeros pais que dizem 'não posso deixar meu filho mais uma hora jogando videogames'", ele comentou. "Mas, se a criança está explorando a codificação, os pais lhe dizem 'isso eu tolero a noite toda'."
O conceito está fazendo sucesso com James Meezan, que está no 2˚ ano. Ele assistiu a um dos primeiros eventos "Hora de Codificar" patrocinados pela MV Gate com sua mãe, Karen Meezan, presidente da associação local de pais e mestres e ex-executiva do setor tecnológico, mas hoje gerente de uma imobiliária. Karen faz parte dos defensores entusiasmados dos cursos de codificação, ao lado de vários diretores de escolas locais.
Ela contou que seu filho tem bom aproveitamento, mas não tinha encontrado seu interesse especial e "não era o melhor corredor do playground".
Mas ele adora programar e passa ao menos uma hora por semana nos CodeKids, programas organizados pela MV Gate para depois do horário escolar.
James, 8, explicou que programar é "conseguir que o computador faça alguma coisa sozinho" e disse que é divertido. Sua mãe falou que, quando se trata de programação, "ele é o melhor corredor".
Sammy Smith, 10,, estava absorta no evento em Mill Valley, movendo blocos de comandos básicos para levar o Angry Bird até a presa e brincando com comandos mais complexos, como "repetir", aprendendo sobre afirmações do tipo "se então".
O uso dos blocos de comandos em palavras para simplificar a lógica de codificação vem em grande medida do trabalho do Laboratório de Mídia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que em 2007 introduziu a linguagem de programação visual Scratch. A linguagem tem milhões de usuários, mas a maioria vem de fora das escolas.
Em 2013 chegou a Code.org, que emprestou ideias do Scratch e procurou difundir o conceito entre escolas e educadores.
Para Hadi Partovi, fundador da Code.org e ex-executivo da Microsoft, a programação de computadores deveria ser ensinada em todas as escolas. Ele a descreveu como sendo tão essencial quanto "aprender sobre a gravidade ou moléculas, eletricidade ou a fotossíntese".
Entre os 20 mil professores que, segundo a Code.org, já se inscreveram no programa está Alana Aaron, professora de matemática e ciência.Ela trocou dois meses de aulas de ciências naturais pela programação.
"A ciência da computação é superimportante. Se meus alunos não forem apresentados a isso, podem perder oportunidades profissionais potenciais." NYT, 20.05.14

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Skate na escola

Este momento, em que migramos para a educação em tempo integral, é propício para exigirmos dedicação do tempo extra a atividades práticas
Não concordo, mas respondi como o professor queria. Vou estudar na véspera, pois há muito a decorar e não quero esquecer. Tenho que fazer uma pesquisa: copiar trechos da Wikipédia. Qual é o afluente esquerdo do rio Solimões em Tefé? A barata é um artrópode? Quais as leis de Newton, segundo a apostila? O avião cai como uma pedra, sem atrito?
O Brasil vai mal em educação, segundo pensadores e os resultados de exames nacionais e mundiais. As frases acima, comuns entre nós, denunciam um ensino à base de memorização e acúmulo de definições.
A maioria dos adultos é analfabeto funcional. Matemática e lógica passam ao largo da educação. Nosso extenso programa escolar, combinado com o método em que o mestre dita e o aluno copia, resulta, quando muito, na acumulação de definições rasas. O aluno é passivo e pouco questiona ou aprofunda as ideias transmitidas. A experimentação ou observação da natureza é praticamente inexistente.
Imagine uma escola onde, em biologia, usa-se microscópio, observam-se células se dividindo e bactérias proliferando, e fazem-se perguntas cada vez mais profundas sobre esses processos até se chegar à resposta "A ciência atual não sabe, mas é tema de pesquisa atual".
Nessa escola, em física, disparam-se foguetes d'água, observa-se e questiona-se a areia da praia ficar mais escura ao encher d'água, experimenta-se a inércia com uma bola em cima de um skate fazendo curva. O objetivo maior do português é ler com prazer e comunicar e escrever de maneira clara.
Em vez de nomes de afluentes de rios, discute-se a importância deles para o florescimento de uma civilização e suas implicações modernas na questão da poluição, ambiente e qualidade de vida. História não é gravar data e nome da serra que Fidel Castro tomou, mas estudos em grupo para, ao longo de várias aulas, relatarem-se "fatos" históricos e atuais, discutindo-se avanços e atrasos, com menos ideologia e mais observação de dados.
Experimenta-se, observa-se e questiona-se de maneira mais profunda fenômenos naturais e sociais; pratica-se música, esporte, culinária, marcenaria, costura, primeiros socorros, instalações elétricas, software, robôs, eletrônica. O ensino não é voltado a uma prova --vestibular ou Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), sua versão melhorada, mas sim à vida.
A crítica arrasadora de um prêmio Nobel de Física sobre o ensino brasileiro em 1950, em "O Senhor Está Brincando, Sr. Feynman?", continua atual. Mesmo a maioria de nossas escolas privadas e de elite se volta para a preparação de uma prova.
Desperdiçamos vida, recursos e cérebros com essa escola maçante e alienada. Albert Einstein, em "Ideas and Opinions" ("Ideias e Opiniões"), expõe a questão do exercitar cérebros: o estudante é o protagonista no aprendizado e o professor aquele que incita e orienta esse processo.
Cabe às nossas universidades, com docentes pesquisadores, formar esse "novo" professor. Mas para atrair boas mentes para essa carreira, cabe à sociedade valorizá-la. (Minha campanha é para que o salário do vereador seja limitado ao do professor primário, figura muito mais relevante à sociedade). Com essa nova escola, ganharemos uma enorme produtividade em todos os ramos. Cidadãos capazes de observar e questionar mudarão a face da nossa lei e política e veremos valorização da vida. O chavão inovação pode virar realidade significativa.
Felizmente, há discussões na academia inspiradas nos projetos "mão na massa" dos laureados L. Lederman e G. Charpak e ações governamentais embrionárias nesse sentido. Tudo isso é bem antigo, dito e repetido, mas pouco praticado.
Este momento, em que Estados e municípios migram para a educação em tempo integral, é propício para exigirmos dedicação do tempo extra a atividades práticas.