quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A falácia do currículo enxuto

Tirar filosofia e sociologia do currículo do ensino médio para "torná-lo mais atrativo" afastará ainda mais os jovens da cultura em sua plenitude

A reforma do currículo do ensino médio anunciada por Dilma Rousseff causou apreensão. A presidente deixou nas entrelinhas, em entrevista na TV, a ideia de retirar do currículo a sociologia e a filosofia.
Quem está no trabalho com o ensino e a pesquisa sabe o bem que essas disciplinas trazem aos jovens. Os resultados podem ser mensurados, principalmente, pelo mercado de livros. A procura por obras clássicas pelos jovens aumentou. Há indicadores que mostram que devemos esse feito a essas disciplinas entre aqueles que, em seguida, chegam às universidades.
Em um país como o Brasil, esses resultados não indicam pouca coisa. Mas, e quanto ao resto do que a presidente disse? É possível enxugar o currículo do ensino médio para "torná-lo mais atrativo"?
Antes de qualquer coisa: a escola tem de ser atrativa pelo que oferece, e não pelo que não oferece! Deixar conteúdos já consagrados de fora torna a escola atrativa só para quem não quer estudar.
Não é o currículo enxuto o fator de atração de alunos para a escola básica e, muito menos, é ele que determina que os estudantes nela permaneçam. Não há pesquisa séria que mostre isso. Ao contrário, todas as pesquisas indicam que, se deixamos de lado fatores externos (renda familiar, tempo livre etc.), é a força intelectual e moral do professor que pesa na decisão do estudante em continuar na escola.
Os professores recebem algo em torno de R$ 9 por hora-aula no Brasil. É um número diminuto perto do que vale a hora de trabalho no Brasil fora do magistério, para qualquer profissão que requisita o mesmo tempo de estudo universitário.
Não é possível manter na escola os melhores mestres com esse tipo de remuneração e, se a escola pública paga mal, não estimula a particular a pagar melhor. Resultado: hoje no Brasil não há classe social que possa ver seus filhos em contato com bons mestres.
O valor da hora-aula é o determinante principal na escola brasileira. Tudo já foi tentado para melhorar essa instituição e não deu certo. Só isso ainda não foi modificado.
Metade da população não consome a cultura mais elaborada. O contato do brasileiro com a cultura letrada ainda depende demais da escola --trata-se de uma regra que também vale para a classe média tradicional.
Teatro, cinema, biblioteca e museu são visitados por estudantes enquanto estudantes. Fora da escola, até música ao vivo de qualidade é deixada de lado. As feiras do livro não são mais eventos para o leigo culto. Uma grade curricular enxuta deixará os jovens fora da cultura em sua plenitude.
A presidente Dilma escorregou. Deveria reestruturar melhor seu pensamento e sua fala.
A maior parte dos políticos brasileiros, até os que se dizem envolvidos com projetos educacionais, tendem a negligenciar a formação no âmbito do ensino médio. Desqualificam-no ao insistirem que ele dever ser "técnico". Trata-se de um nível escolar importante e que deve ser democratizado sem que tenhamos que vê-lo pior do que já está. Folha, 19.11.2014.
PAULO GHIRALDELLI, 57, é filósofo, escritor, cartunista e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Direito tem redução inédita de formandos: Número caiu 3%, na primeira queda da década; quantidade de graduados em administração também encolheu

Para o MEC, queda de diplomados é causada pela supervisão da pasta, que fechou vagas em cursos ruins

FLÁVIA FOREQUEDE BRASÍLIA
A queda do número de formandos no ensino superior entre 2012 e o ano passado atingiu os cursos com maior volume de estudantes no país: direito e administração.
Juntas, as graduações respondem por 23% das matrículas em cursos presenciais.
A redução de bacharéis em direito (3%) foi menor do que a média de todos os cursos (5,65%), mas a primeira queda verificada na última década. Em 2012, 97,9 mil estudantes concluíram a graduação. No ano passado, 95 mil.
Em administração, o percentual chegou a 11,86%. O movimento de baixa nesse curso já vinha ocorrendo em anos recentes, mas em menor intensidade.
Entre 2011 e 2012, por exemplo, a queda foi de 0,88% --993 diplomas a menos, em números absolutos. No ano passado, essa diferença foi de 13.199 formandos.
Para Samuel Melo Júnior, doutor em administração, um dos motivos principais é a migração da demanda dos alunos para cursos tecnológicos sobre gestão, de menor duração (média de dois anos) e maior foco.
"Esse profissional atende a uma demanda específica e tem rápida inserção no mercado. São cursos de graduação que o Conselho Federal de Administração já recebe entre os associados", afirma Júnior, também diretor da câmara de formação profissional da entidade.
Há quatro anos, por exemplo, o curso de gestão de recursos humanos havia formado 16,7 mil profissionais. No ano passado, o número aumentou para 26,3 mil.
"Não vemos isso como algo ruim, mas há diferenças entre os formandos. A questão [para explicar a redução] não é de empregabilidade, há muito espaço para o administrador", avalia.
Para o Ministério da Educação, a queda do número de formandos de uma forma geral foi motivada por medidas de supervisão e fiscalização do governo federal, que resultaram em fechamento de vagas ou congelamento de vestibular em cursos considerados de má qualidade.
MEDICINA
Os cursos de medicina tiveram aumento no número de formandos, mas em um ritmo modesto.
No ano passado, a quantidade de novos médicos que entravam no mercado foi de 16.495 --apenas 141 a mais do que em 2012. No período anterior, o incremento foi da ordem de 1.700.
Também houve redução do ritmo de crescimento das matrículas na graduação.
"Esse número era muito alto. O que sempre falamos é que a quantidade de médicos não vai resolver o problema", afirma Mauro Ribeiro, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina.
Na visão da entidade, o problema da distribuição de profissionais pelas regiões do país pode ser resolvido com a criação de uma carreira de Estado para a categoria. Folha, 13.11.2014.

Evolução sofrida


O crescimento sustentado é crucial para tornar a educação um caminho mais promissor de ascensão social


A educação é uma unanimidade nacional. O problema é que não é incomum que o seu debate se resuma a uma questão de vontade (ou à reclamação de uma suposta falta dela entre os políticos).
Por isso, venho tentando empreender uma tarefa arriscada: construir uma narrativa dos avanços e das dificuldades da trajetória brasileira. Um início seguro é olhar os indicadores de desempenho e de esforço.
Quanto ao primeiro, há avanços visíveis nos resultados dos estudantes brasileiros no Pisa (avaliação internacional feita pela OCDE) e no Ideb (indicador do governo federal). Também vem diminuindo a distorção entre idade e série.
Contudo, a evolução é sofrida. Os resultados do mais recente Ideb mostraram que as metas só foram cumpridas para a etapa inicial do ensino fundamental, tendo ficado aquém na etapa final e no ensino médio.
Quanto ao esforço, não há dúvida: é crescente a prioridade da educação pública. O gasto total em relação ao PIB foi de 4,5% em 2005 para 6,4% em 2012, segundo dados oficiais. Quase todo o aumento se deu na educação básica.
Aqui é que a narrativa se complica. O que tem significado no cotidiano escolar esse aumento de recursos? Quais são as dificuldades persistentes e o que avança?
Em qualquer país é demorada a universalização da educação básica. Como o aprendizado também ocorre em casa, é duro fazer as transições, isto é, ensinar aos filhos mais do que seus pais puderam ter na escola. Para isso, recrutar professores entre os mais bem preparados da nação é uma estratégia frutífera.
Mas, num país populoso e tão desigual, a elite é pequena. A escola pública conta com professores oriundos principalmente de classes populares, que tiveram eles mesmos uma formação acidentada.
A professora da UFRJ Daniela Patti, com quem debati esta coluna, destaca que é comum, por exemplo, que professores dos anos iniciais do fundamental tenham falhas de formação para o ensino dos conteúdos de matemática e ciências.
Assim, é chave investir na formação continuada dos profissionais. Por exemplo, a Faculdade de Educação da UFRJ recebeu neste ano verba federal para requalificar educadores de todos os municípios do Rio.
Outra dificuldade é garantir a permanência do estudante na escola, em particular após o fundamental. A partir dos 16 ou 17 anos, há oferta de trabalho, cujas remunerações podem de imediato soar mais recompensadoras que continuar o estudo. Anos depois, tais jovens, que tiveram formação mais longa e melhor que a dos pais, talvez mudem de ideia, percebendo que a formação incompleta limita as chances de progresso.
Por isso, é crucial a oferta da EJA (Educação de Jovens e Adultos). A EJA, porém, tem sofrido com perda de matrículas e falta de prioridade, já que não é avaliada pelo Ideb, algo pelo qual os governos locais têm sido crescentemente cobrados.
O ensino médio sofre ainda de "crise de identidade". Parte dos jovens busca um curso superior, o que exige reforçar, por exemplo, o aprendizado de matemática e ciências. Outra prefere curso técnico, concomitante ou sequencial ao médio regular, que pode ser caminho mais certeiro para a ascensão social. O Pronatec e a expansão das escolas técnicas federais são boas iniciativas. Porém o duplo objetivo dificulta a formatação das políticas públicas.
Há ainda uma multiplicidade de iniciativas, como a expansão da educação infantil, que já atinge quase 80% das crianças de 4 e 5 anos, ou a inclusão de crianças com necessidades especiais, que exige, entre outras ações, formar e contratar intérpretes da Língua Brasileira de Sinais. Isso sem esquecer as iniciativas mais conhecidas, como o Enem e o piso nacional do magistério.
Retomar o crescimento sustentado é crucial para criar perspectivas que tornem a educação um caminho mais promissor de ascensão social. É ele que permitirá elevar os recursos disponíveis por aluno, pois, como proporção do PIB, o gasto do Brasil chegou ao patamar dos ricos.
União, Estados e municípios compartilham dispêndios e responsabilidades num planejamento que deve atender a uma ampla gama de demandas e deficiências. Muita coisa tem sido feita. Mas os ganhos de qualidade, sem descuidar da inclusão educacional, dão-se de geração em geração, exigindo persistência e paciência. Um debate mais bem especificado e pragmático é proveitoso. Folha, 13.11.2014. marcelo.miterhof@gmail.com

Educação como prêmio

Mais de 2 milhões de alunos da rede paulista de ensino acabam de realizar o Saresp, exame que avalia suas habilidades acadêmicas e, de quebra, define quais escolas farão jus ao bônus por desempenho pago pelo governo de São Paulo.

Não é coincidência que, diante da prova, professores fiquem tão ansiosos quanto os estudantes, como mostrou reportagem desta Folha. O prêmio, oferecido às unidades que cumprem suas metas educacionais, pode representar um acréscimo de até 2,9 salários aos rendimentos anuais de docentes e outros funcionários da instituição.
Embora o princípio de recompensar o mérito seja louvável, incentivos monetários para educadores estão entre os mais polêmicos. Sindicatos da categoria tendem a enxergar no mecanismo um artifício para conter salários, enquanto observadores mais liberais veem um estímulo ao esforço individual.
Do ponto de vista dos resultados, pesquisas empíricas indicam um quadro nuançado. Sabe-se de forma inequívoca apenas que o bônus não é uma panaceia; seus efeitos dependem de outras variáveis.
Richard Murnane, da Universidade Harvard, sustenta que esse gênero de ação tende a funcionar quando o desempenho dos alunos é extremamente baixo, mas isso não se repete nos países de melhor performance, como os Estados Unidos. Um estudo sobre o programa adotado em Nova York mostrou até que a bonificação pode ter impacto negativo.
Como o sistema educacional de São Paulo --e do Brasil, de modo geral-- não pode ser catalogado nem mesmo como mediano, políticas de incentivo têm lugar por aqui. Murnane, entretanto, afirma que, para não fracassarem, as ações devem ser bem planejadas.
É necessário reconhecer o risco de respostas disfuncionais, como fazer com que os professores ensinem exclusivamente para o teste, e precaver-se contra elas. Há que levar em conta, ainda, o quanto as notas são influenciadas por fatores alheios à sala de aula, como renda e escolaridade dos pais, quantidade de livros existentes na casa etc.
Entre os poucos estudos sobre o bônus paulista, um deles --o mestrado de Cláudia Hiromi Oshiro, na USP de Ribeirão Preto-- traz evidências de que a ferramenta tem impacto significativo na quarta série (quinto ano), mas não na oitava (nono ano).
Os achados recomendam não só que se dê continuidade à política de incentivos como também que se redobrem os esforços para medir seus efeitos. O país precisa fazer a lição de casa se quiser uma educação melhor como prêmio.
Folha, 13.11.2014.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

MARCELO MITERHOF: Divididos pela educação


A meritocracia é uma ideia traiçoeira; é difícil mostrar que a elite se estabeleceu como tal pelo mérito
O Brasil vive um período conflituoso. Apesar do clima desagradável, é bom que as divergências aflorem. Da última vez que isso ocorreu tão intensamente, acabou na ditadura militar. Porém agora a democracia é mais sólida do que a instalada em 1946.
Assim, é possível explorar temas indigestos, à direita e à esquerda. Por exemplo, no Brasil às vezes parece que é uma deselegância falar da brutal herança da escravidão.
Isso é coisa antiga. No clássico texto "As ideias fora do lugar", o professor Roberto Schwarz trata de uma elite que no século 19 se julgava liberal, mas convivia com o trabalho escravo. Atualmente, a elite brasileira clama por "meritocracia".
Para entender a dificuldade do conceito, vale olhar para as reformas educacionais da primeira metade do século 20. Isso permite ver que a longeva e profunda divisão do país se expressa além dos indicadores de concentração de renda e riqueza.
No início da década de 1930, as chamadas "reformas Francisco Campos" pela primeira vez tentaram nacionalmente atacar distintos níveis de ensino: o superior, o secundário, além do curso comercial. É eloquente que, num país em que cerca de dois terços da população adulta era analfabeta, o único nível deixado de fora tenha sido o primário!
Para piorar, o secundário, que nos moldes atuais começava na segunda fase do ensino fundamental, passou a ter obrigatoriamente um "exame de admissão". Esse foi um mecanismo de restrição ao acesso incompatível com um nível tão básico de educação, que aterrorizou várias gerações de pré-adolescentes até 1971.
A prioridade era propiciar uma educação de mais qualidade a quem tinha uma condição de partida melhor. Nessa época, foram criadas a USP e a Universidade do Brasil (atual UFRJ). Depois, consolidou-se um sistema universitário público de relativa qualidade, porém limitado a um percentual ínfimo da população.
Nos anos 1940, a "reforma Capanema" separou o então secundário entre o ginásio e um novo secundário, chamado de colegial e dividido entre científico e clássico, e enfatizou o ensino profissional, tendo criado o Senai. A industrialização se acelerava, exigindo mão de obra para atividades novas no país.
Nesse contexto, seria razoável que a prioridade fosse alfabetizar e propiciar treinamento voltado às necessidades do setor produtivo. Podendo obter empregos industriais ou urbanos de alta produtividade, uma pessoa recém-emigrada do campo teria expressivos ganhos de renda, o que lhe permitiria propiciar aos seus filhos melhores oportunidades educacionais.
Isso de fato aconteceu, mas foi comum somente entre os descendentes de imigrantes voluntários, que vinham de países menos desiguais e que já tinham uma educação fundamental mais robusta.
A maioria da população, descendente de gerações que estiveram por mais de três séculos sob escravidão, sem nenhum acesso à educação formal, não tinha como competir pelo direito de trilhar uma formação educacional tão restrita.
O problema é que faltou um esforço nacional para universalizar o primário em duas ou três décadas (e posteriormente os níveis seguintes da educação básica), o que só foi ocorrer para valer a partir da Constituição de 1988.
Num país em que a renda per capita não é alta, há uma limitação estrutural de recursos para estabelecer um sistema público de educação. Contudo, houve também falta de priorização. A Constituição de 1934, por exemplo, sob pressão da igreja, deu isenções tributárias às escolas particulares. Hoje, há isenções de IR para gastos com educação. Na prática, isso significa um financiamento público da educação privada, que tende a reforçar a dualidade de acesso ao ensino entre as classes sociais.
Essa dualidade evidencia que a meritocracia é uma ideia traiçoeira. É claro que há mérito em histórias individuais e familiares daqueles que há duas ou três gerações tiveram forte ascensão social. Entretanto, como grupo, é difícil mostrar que a elite nacional se estabeleceu como tal principalmente pelo mérito.
Ao menos no Brasil, o combate à desigualdade --de renda, na educação etc.-- é também uma iniciativa pró-mercado, que visa a estancar o desperdício de talentos e, com isso, aumentar a competição pelas melhores posições em diversos aspectos da vida coletiva. Assim, no futuro a elite nativa poderemos nos considerar algo mais que privilegiados.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Educação pelos juros

Criado em 2005, o Programa Universidade para Todos (ProUni), do governo federal, já beneficiou 1,4 milhão de estudantes pobres com bolsas integrais ou parciais, ao custo de R$ 824 milhões anuais em renúncia fiscal (2013).

Viceja nessa seara, ainda, o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), alternativa para quem ultrapassa o limite do ProUni de três salários mínimos per capita na família. De 2010 a 2014, os financiamentos pelo fundo saltaram de R$ 1 bilhão para R$ 9 bilhões, e 1,7 milhão de alunos foram subsidiados.
Num país com meros 12% de adultos entre 25 e 64 anos dotados de diplomas superiores, trata-se de uma boa notícia. A marca nacional é a mais baixa das 34 nações na lista da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O Brasil necessita muito de mão de obra qualificada. Parte dessa demanda pode ser suprida pelo ensino técnico-profissional. Ciente disso, o governo também expande o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), lançado em 2011.
Um largo contingente com formação universitária, contudo, continua indispensável. O mercado precisa de profissionais flexíveis, capazes de criar soluções a partir de análise e reflexão, atributos tradicionais do ensino superior.
O Fies tem o mérito de nivelar as oportunidades de qualificação para jovens de classe média que não conseguem pagar colégios privados e, por essa via, chegar às boas universidades públicas e gratuitas.
O subsídio embutido nos termos do financiamento é considerável. Com taxa de juros de 3,4% ao ano, 18 meses de carência após a formatura e prazo de pagamento de três vezes a duração do curso mais um ano, estima-se que o investimento não reembolsado para a União monte a 40% ou 45% do valor financiado.
Há que certificar-se, assim, de que o dinheiro público está bem empregado. Tanto ProUni quanto Fies vinculam o credenciamento de instituições de ensino elegíveis ao bom desempenho nas avaliações oficiais. Mas isso é pouco.
Nota-se excessiva concentração de vagas subsidiadas em cursos de direito e administração, áreas nas quais não há carência de formandos. Engenharia civil aparece em terceiro lugar, mas deveria estar no topo, com medicina e licenciaturas em matemática e ciências.
O governo já usou taxas diferenciadas de juros para incentivar matrículas em campos estratégicos, mas depois optou pela prática populista de igualar as regras para todos. Diante do aperto fiscal que virá, parecem evidentes a necessidade e a urgência de revê-la. Folha, 07.10.14

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Escola em tempo integral

Cada vez mais, a educação escolar em tempo integral surge como opção para pais com filhos que têm desde meses de vida até a adolescência. Entretanto, talvez pela falta de tradição em nosso país desse tipo de funcionamento, as dúvidas são inúmeras. É bom, para a criança e/ou para o jovem, frequentar a escola por oito, nove, e, às vezes, até 12 horas? Qual a idade ideal para passar a frequentar dois turnos? É melhor ficar na escola, com outras crianças, ou em casa, com adultos? Esses são exemplos de perguntas que os pais fazem, o que indica que é importante pensar sobre essas questões.
Primeiramente, é bom considerar a realidade da vida das famílias. Muitos pais simplesmente não têm com quem deixar a criança em casa, por isso eles usam o tempo integral escolar para os filhos, mas mesmo assim ficam com dúvidas e com culpa. Nesses casos, as dúvidas e a culpa dos pais atrapalham mais o filho do que o fato de ele ficar na escola por mais tempo. Se a família tem de usar essa alternativa, que seja com a convicção de que essa é a vida possível para eles. Afinal, por que alimentar culpa em relação ao que é impossível mudar?
E os pais que podem escolher? É importante saber que não há respostas certas para as dúvidas. Não há consenso entre os estudiosos das ciências humanas sobre se é benéfico ou não, para os mais novos, dedicar mais de seu tempo à escola. Há pesquisas diversas que sustentam tanto a vertente dos que apontam mais vantagens quanto a dos que veem mais desvantagens no fato. E agora?
Para ajudar os pais que estão em dúvida sobre a escolha mais acertada para o filho, levanto algumas pistas que podem iluminar sua decisão.
1 - As crianças pequenas se desenvolvem melhor junto a outras crianças, mas estar em casa, mesmo na ausência dos pais, promove segurança e bem-estar emocional. Se os pais podem escolher, deixar a criança ficar um turno em casa, pelo menos alguns dias na semana, pode ser uma decisão equilibrada.
2 - Ficar o tempo todo no mesmo ambiente pode ser enfadonho para a criança, por isso verificar a programação da escola para os dois turnos e a diversidade de espaços e atividades é um ponto importante a se considerar. Além disso, hoje há espaços dedicados somente para as crianças ficarem no contra turno de seu período escolar, participando de uma programação cultural pensada para elas.
3 - As escolas que oferecem período integral precisam contemplar o desenvolvimento emocional e social dos mais novos. Como eles podem desenvolver e conquistar a autonomia sem ter a oportunidade de fazer escolhas, por exemplo?
4 - Os professores da instituição escolar precisam funcionar como equipe que se reúne com regularidade e que planeja junto, para que o ensino não fique ainda mais fragmentado do que já é na estrutura escolar atual.
5 - Pais e professores precisam estar convictos de que o tempo integral para a criança e para o jovem é benéfico a eles. Verificar junto ao corpo docente se eles têm sustentação e formação promovida pela instituição pode ser fundamental.
6 - A criança precisa de um tempo para descansar e ficar sozinha, se quiser, por isso a escola precisa oferecer essa possibilidade aos alunos.
A pista mais preciosa, porém, diz respeito aos pais. Como somente eles conhecem bem o filho que têm, devem basear sua decisão nesse conhecimento. Folha, 02.09.2014.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Subornando os alunos

HÉLIO SCHWARTSMAN

SÃO PAULO - Devemos, como sugere Aécio Neves, pagar os jovens para que se deem bem na escola? A questão não é trivial e já fez correr muita tinta no mundo acadêmico.

Especialmente os pedagogos torcem o nariz para essa ideia. Apoiam-se principalmente em suas intuições e em alguns trabalhos que mostram que incentivos financeiros podem ser traiçoeiros. Às vezes eles funcionam bem num primeiro momento, mas, depois que são retirados, deixam atrás de si um rastro de destruição, pois fazem com que a atividade antes remunerada não seja mais vista como possuidora de valor intrínseco. É o que os psicólogos chamam de efeito de superjustificação ou de corrupção da motivação.
Economistas, como é natural, tendem a ser um pouco mais simpáticos a prêmios em dinheiro. Para eles, o que importa é saber se os programas funcionam. Se forem eficazes já trazem sua própria justificativa moral.
E, aqui, as evidências, embora não sejam inequívocas, sugerem alguma eficácia. Roland Fryer Jr., de Harvard, é um dos estudiosos que mais pesquisou o assunto nos últimos anos. Depois de ter gastado mais de US$ 6 milhões distribuindo várias modalidades de incentivos em mais de duas centenas de escolas dos EUA, concluiu que pagar alunos para cumprir determinadas tarefas, como assistir às aulas, comportar-se bem, ler livros, fazer a lição de casa, funciona melhor do que recompensá-los pelo produto final, que é tirar boas notas. A razão provável é que os estudantes não sabem o que fazer para transformar seu desejo de receber o bônus num resultado mensurável.
Aqui, mesmo sem descartar os temores dos pedagogos, inclino-me a concordar com os economistas. Se os incentivos dão certo, é preciso utilizá-los. Ainda que a corrupção da motivação seja um fenômeno real, não podemos levá-la muito longe sem questionar a legitimidade de salários, comércio, lucro e tantas outras instituições que definem a sociedade. Folha, 27.08.2014.
www.abraao.com

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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Desigualdades na educação

MARCELO MITERHOF

Ainda há desigualdades a combater na educação; conter gastos é sugestão longe dessa realidade

Foi publicado no fim de julho a quinta edição do relatório "As desigualdades na escolarização no Brasil", feito pelo Observatório da Equidade, ligado ao "Conselhão" (http://www.cdes.gov.br/documento/3362512/relatorio-de-observacaon-5-as-desigualdades-na-escolarizacao-no-brasil-072014.html).
Sua leitura é proveitosa para ter um panorama abrangente e ponderado da educação brasileira, reconhecendo os avanços e apontando as dificuldades. Em particular, o relatório tem o mérito de não só avaliar a evolução dos indicadores médios como olhar para os extremos.
Um aspecto que chama a atenção é que o esforço brasileiro se concentra nas novas gerações. Assim, há grupos que estão ficando para trás ou ainda não foram de todo incluídos no processo de universalização.
Isso se reflete, por exemplo, no analfabetismo, a mais grave mazela educacional. De 2005 a 2012, a taxa caiu de 11,1% para 8,7%, porém entre as pessoas com mais de 60 anos a queda foi de 24,8% para 24,4%.
Fica a impressão de que os analfabetos idosos estão abandonados, enquanto se aguarda que o curso natural da vida acabe com o analfabetismo. É difícil mesmo combatê-lo entre adultos. Seria necessário que isso se tornasse uma bandeira nacional. Como preferimos "calar e consentir", é bom que ao menos se registre que o problema persiste.
É mais difícil fazer o mesmo quanto às desigualdades entre os meios urbano e rural. De 2005 a 2012, a proporção de jovens de 18 a 24 anos que completaram o ensino médio foi de 44% para 54,7% --algo substancial, ainda que longe da universalização e representando grande desafio para a reformulação do EJA (Educação de Jovens e Adultos).
Nas cidades, o indicador subiu de 49,3% para 58,4%, e, nas zonas rurais, de 17,8% para 31,9%. A iniquidade tem caído, mas ainda representa grande desvantagem para os jovens do campo.
Um caso bem-sucedido tem sido o da educação infantil, cujo crescimento é notável, em especial nos grupos mais vulneráveis. Como se sabe, os estímulos cognitivos e sociais nessa idade são cruciais para o sucesso educacional de longo prazo.
O percentual de crianças de quatro e cinco anos de idade que vão à escola passou de 62,7% em 2005 para 78,2% em 2012. No campo, foi de 44,5% para 66,7%, e, nas cidades, de 67,6% para 80,7%. Entre os 20% mais pobres, a evolução foi de 52,8% para 71,2%, enquanto no quinto mais rico foi de 86,9% para 92,5%.
Isso é fruto da inclusão dessa faixa etária na educação básica ao se criar o Fundeb, em 2007. A universalização deve ser obtida nos próximos anos, já que em 2013 passou a ser obrigatório frequentar escolas a partir dos quatro anos. Quer dizer, prioridade legal e orçamentária faz diferença nas políticas públicas.
Isso remete a um tema que tem se tornado controverso: a expressiva elevação dos gastos por aluno, que a valores constantes passaram de R$ 1.993 em 2005 para R$ 4.267 em 2011. Analistas conservadores têm defendido que tal aumento não melhora o desempenho dos alunos.
Essa avaliação, que pode vir acompanhada de testes econométricos, tende a não levar em conta que a elevação de gastos é recente e que são longos os períodos de maturação dos esforços em educação, em especial quando se parte de um sistema muito precário. Uma evidência disso é que os resultados dos alunos no ensino fundamental, cujos aumentos de gastos se iniciaram ainda nos anos de 1990, são hoje melhores do que os do ensino médio.
Também é preciso lembrar que o desafio é descomunal. Pagando o preço de ter sido de longe o principal país escravocrata, a taxa de analfabetismo era em 1950 de mais de 50%. Só no fim da década de 1980 é que se chegou à metade dos adultos com ao menos o primário completo.
A busca da universalização da educação se tornou efetiva só a partir da Constituição de 1988. Desde então, a melhora tem sido consistente tanto na ampliação do acesso quanto no aumento da qualidade, como mostram os resultados de avaliações nacionais (Ideb) e internacionais (Pisa).
Não obstante, o relatório do Conselhão mostra que na educação brasileira ainda há muito a caminhar e desigualdades a combater. A contenção de gastos parece ser uma sugestão longe dessa realidade. Folha, 14.08.2014

terça-feira, 17 de junho de 2014

Escrever à mão ajuda aprendizado

Por MARIA KONNIKOVA
A escrita à mão é importante?
Muitos educadores aconselham que se ensine alunos a escrever com letra legível, mas apenas na pré-escola e na primeira série. Depois disso, a ênfase passa rapidamente para a habilidade no teclado.
No entanto, novas evidências sugerem que os vínculos entre a escrita à mão e o desenvolvimento educacional são profundos.
Quando as crianças aprendem primeiro a escrever à mão, elas não apenas aprendem a ler em menos tempo como se mostram mais capazes de gerar ideias e reter informações.
"Um circuito neural singular é ativado automaticamente quando escrevemos", disse Stanislas Dehaene, psicólogo do Collège de France, em Paris.
"E parece que esse circuito contribui de maneiras especiais, que desconhecíamos´."
Um estudo de 2012 liderado pela psicóloga Karin James, da Universidade de Indiana, confirma essa ideia. Uma letra ou uma forma traçada numa ficha foi mostrada a crianças que não sabiam ler ou escrever. Depois, pedia-se que elas a reproduzissem. Em seguida, as crianças eram colocadas num aparelho de ressonância magnética cerebral e a imagem era mostrada a elas novamente.
Os pesquisadores descobriram que o processo inicial de reprodução fazia grande diferença. Quando as crianças tinham desenhado a letra à mão, exibiram atividade aumentada nas áreas do cérebro ativadas em adultos quando leem e escrevem. A ativação foi nitidamente menor em crianças que digitaram a letra ou a traçaram por cima da figura original.
Karin James atribui a diferença ao caráter irregular que é inerente à escrita à mão: são grandes as chances de produzirmos resultados altamente variáveis.
"Quando uma criança produz uma letra irregular, isso pode ajudá-la a aprender essa letra", disse a psicóloga. Ser capaz de decifrar cada letra escrita de modo irregular pode ser mais útil do que apenas ver o mesmo resultado.
O efeito não se limita ao reconhecimento de letras.
Em um estudo que acompanhou crianças da segunda série até a quinta, a psicóloga Virginia Berninger, da Universidade de Washington, demonstrou que a letra de forma, a letra de mão e a digitação em teclado são associadas a padrões cerebrais diferentes -e cada padrão resulta em um produto final distinto.
Quando as crianças escreviam à mão, não apenas produziam mais palavras em menos tempo do que produziam no teclado, como expressavam mais ideias. As crianças com letra melhor apresentavam ativação neural maior em áreas ligadas à memória operante e ativação geral aumentada nas redes de leitura e escrita.
Parece agora que pode haver uma diferença até entre a escrita em letra de forma e letra de mão (cursiva). Na disgrafia, condição em que a capacidade de escrever é deficiente, às vezes ocorre algo incomum: algumas pessoas podem ter dificuldade em escrever com letra de mão, enquanto outras têm problemas para escrever com letra de forma.
Na alexia, ou capacidade de leitura deficiente, algumas pessoas que não conseguem processar a letra de forma ainda assim conseguem ler letra de mão, e vice-versa, fato que sugere que as duas maneiras de escrever envolvem redes cerebrais distintas e, portanto, mais recursos cognitivos.
Berninger chega a sugerir que a escrita cursiva pode treinar a capacidade de autocontrole de maneira que outros modos de escrita não fazem. Alguns pesquisadores argumentam que ela pode ser o caminho para tratar a dislexia.
Os benefícios de escrever à mão transcendem a infância. Para os adultos, digitar pode ser eficiente, mas pode reduzir a capacidade de processar informações novas.
Embora nem todos os especialistas estejam convencidos da importância dos benefícios de longo prazo da escrita à mão, Paul Bloom, psicólogo da Universidade Yale, considera as novas pesquisas interessantes. "O próprio ato de escrever algo à mão obriga você a focar sobre o que é importante", disse. Depois de uma pausa para refletir, acrescentou: "Talvez o ajude a pensar melhor." NYT, 17.06.2014

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Lei da Palmada: Amar e punir

Para punir menos as crianças, deveríamos amá-las menos: quem ama demais castiga demais
Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou e mandou para o Senado a Lei da Palmada, ou Lei Menino Bernardo (em homenagem a Bernardo, assassinado recentemente, aos 11 anos, no RS). A lei fará que pais e educadores não possam recorrer a castigos corporais, mesmo moderados, ainda que sejam na intenção de educar as crianças.
Há argumentos contra: a vontade de não deixar o Estado invadir o espaço privado da família e o receio de que educar se torne mais impossível do que já é.
Eu sou mais a favor da lei do que contra ela, porque a violência é contagiosa: reprimir a violência de pais e educadores talvez quebre o círculo vicioso pelo qual tendemos a reproduzir a violência da qual fomos vítimas.
Mesmo assim, cuidado: o que enlouquece as crianças não são as palmadas, mas as oscilações repentinas do humor dos adultos.
Harold Searles, numa obra (1959) que continua sendo uma referência, descreveu "O Esforço para Tornar o Outro Louco". Ele revelou, por exemplo, as consequências enlouquecedoras de um comportamento dos pais feito de alternâncias rápidas e contínuas entre amor visceral e fúria punitiva.
Essa alternância não é a obra de malucos. Ao contrário, ela é trivial, sobretudo quando os adultos amam muito seus rebentos (ou seus educandos) e, portanto, querem dar tudo (e mais um pouco) para eles: tempo, atenção, esperanças, bens materiais etc.
Repetidamente, o adulto que ama demais explode, porque não aguenta o sacrifício de sua própria vida, que as crianças não lhe pedem, mas que ele se impõe como se as crianças lhe pedissem. Cada explosão, por sua vez, produz culpa e uma nova onda de extrema paixão amorosa. E a coisa recomeça.
Essa alternância de beijos molhados e punições terrificantes mina a confiança da criança no mundo e é muito mais enlouquecedora do que, por exemplo, uma severidade constante, mesmo que ela se expresse em castigos físicos.
De novo, uma criança não enlouquece porque seus pais praticam a palmatória; mas algumas crianças enlouquecem porque os pais passam de apertões e declarações de amor a gritos raivosos e tentativas de estrangulação.
Conclusão: talvez a maior violência contra as crianças não seja a palmada, mas o amor excessivo dos adultos.
Falando em "maior violência contra as crianças", durante a discussão na Câmara, no dia 21, o deputado pastor Eurico disse que a Xuxa cometeu "a maior violência contra as crianças", referindo-se ao fato de que, em 1982, num filme vagamente erótico, Xuxa (então com 18) contracenou com um garoto de 12 anos (cá entre nós: o verdadeiro problema com o filme em questão é que ele não é exatamente uma obra-prima).
Enfim, para o pastor Eurico, a maior violência contra as crianças consiste em deixar um menino de 12 anos acariciar um seio.
Por coincidência, no dia seguinte à patacoada do pastor Eurico, o Ministério Público de São Paulo ratificou um Termo de Ajustamento de Conduta com a Igreja Universal do Reino de Deus para impedir que crianças e adolescentes sejam expostos publicamente, durante cultos ou eventos.
A promotora de Justiça responsável pelo TAC, Fabiola Moran Faloppa, entendeu que são humilhantes ou degradantes as situações em que, no púlpito ou na TV, o ministro religioso revela informações íntimas sobre as crianças (suas doenças, seus abusos sofridos etc.). Concordo com a promotora. E acrescento um comentário.
Há várias razões para expor as crianças à religião. Entre elas, a ideia de que a autoridade divina possa ajudar pais e educadores --a ameaça do inferno substituindo castigos e palmadas. Pode ser. Mas é também possível que, para as crianças, a religião seja mais perigosa do que a palmada ou o vago erotismo de um filme.
O Deus da Bíblia é muito parecido com a mãe ou o pai que enlouquecem seus filhos: ele nos ama a ponto de nos criar e nos entregar as chaves do mundo, mas pode se transformar num castigador absurdamente intransigente (palmadas eternidade adentro).
Em outras palavras, Deus passa do amor à punição com a mesma ferocidade de uma mãe ou de um pai ciclotímicos. Será que os ganhos sociais do ensino precoce da religião compensam seus efeitos enlouquecedores?
Seja como for, se quisermos punir menos as crianças, deveríamos começar por amá-las menos, adotando um novo provérbio: quem ama demais castiga demais. Folha, 29.05.2014. ccalligari@uol.com.br @ccalligaris

terça-feira, 20 de maio de 2014

Escolas ensinam programação de computadores a crianças

Para as crianças menores, aulas parecem um jogo
Por MATT RICHTEL
MILL VALLEY, Califórnia - Jordan Lisle, que tem sete anos e é aluno do 2˚ ano, ficou com sua família num evento escolar no ano passado, depois do horário normal das aulas, cujo objetivo era despertar um interesse novo: a programação de computadores.
"Acho que ele está ficando um pouco para trás", disse sua mãe, Wendy Lisle, explicando por que eles tinham entrado no curso.
O evento é parte de um movimento nacional para o estudo de codificação de computadores, que cresce rápido como a internet.
Desde dezembro, 20 mil professores da pré-escola até o 12º ano introduziram aulas de codificação, segundo a Code.org, grupo apoiado pelo setor de tecnologia e que oferece currículos gratuitos.
Cerca de 30 distritos escolares nos Estados Unidos terão aulas de codificação no próximo ano letivo, em sua maioria no ensino médio, mas também no fundamental.
Em nove Estados, a ciência da computação deixará de ser uma matéria eletiva e terá o mesmo valor de matemática e ciências.
Também são promovidos eventos após o horário das aulas, como o que aconteceu em Mill Valley, onde 70 pais e 90 crianças, da pré-escola até a 5˚ ano, se reuniram em torno de computadores para aprender os elementos fundamentais da lógica de computação.
Hoje, os smartphones e aplicativos estão por toda parte, e as carreiras profissionais em engenharia são cobiçadas. Para muitos pais -especialmente os que vivem aqui, no corredor da tecnologia-, a codificação não é tanto uma atividade extracurricular quanto uma habilidade básica.
A difusão das aulas de codificação é "algo sem precedentes", disse Elliot Soloway, professor de educação e ciência da computação na Universidade de Michigan. "Nunca antes houve um avanço tão veloz na educação."
Mas não está claro se o ensino de ciência da computação na escola primária vai garantir empregos no futuro ou fomentar mais criatividade e pensamento lógico.
E, especialmente no caso das crianças menores, disse Soloway, a atividade é mais como um videogame -melhor que disparar armas simuladas, mas não algo que tenha grandes chances de dar habilidades reais de programação.
Alguns educadores acham preocupante o papel proeminente da indústria tecnológica: grandes empresas de tecnologia e seus fundadores, entre eles Bill Gates e Mark Zuckerberg, do Facebook, contribuíram com US$ 10 milhões (R$ 22,1 milhões) para a Code.org.
A organização paga a formação de professores do secundário para que possam dar aulas mais avançadas de computação. Para os alunos menores, ela desenvolveu um currículo de codificação que casa instrução básica com videogames envolvendo os Angry Birds e zumbis esfomeados.
As aulas não envolvem a linguagem tradicional de computadores. Em vez disso, usam comandos de palavras simples -coisas como "avançar" e "virar à direita"- nos quais as crianças podem clicar para mandar um Angry Bird capturar um porco.
Distritos escolares de todo o país vêm aderindo à tendência. O sistema de ensino público de Chicago espera ter a ciência da computação como matéria obrigatória em seus 187 colégios de ensino médio até 2019 e ter as aulas em 25% de outras escolas. As escolas públicas de Nova York estão treinando professores para dar aulas de ciência da computação em 40 colégios de ensino médio, como preparação para a universidade.
"Há uma demanda grande por essas habilidades, tanto no setor tecnológico quanto em todos os outros", comentou Britt Neuhaus, diretora de projetos especiais no setor de inovação das escolas de Nova York.
A cidade pretende ampliar o ensino da disciplina até 2015 e estuda a possibilidade de levá-lo para as escolas de ensino médio.
O movimento é acompanhado de muito fervor de mercado, do tipo "estamos mudando o mundo", por parte do Vale do Silício.
"Isto é estrategicamente importante para a economia dos Estados Unidos", opinou o empreendedor John Pearce.
Ele e outro empreendedor, Jeff Leane, criaram a organização sem fins lucrativos MV Gate para levar cursos de codificação desenvolvidos pela Code.org para Mill Valley, um subúrbio de alto padrão de San Francisco, do outro lado da ponte Golden Gate.
De acordo com Pearce, os pais adoram a ideia de oferecer a seus filhos alguma coisa produtiva a se fazer com os computadores.
"Temos inúmeros pais que dizem 'não posso deixar meu filho mais uma hora jogando videogames'", ele comentou. "Mas, se a criança está explorando a codificação, os pais lhe dizem 'isso eu tolero a noite toda'."
O conceito está fazendo sucesso com James Meezan, que está no 2˚ ano. Ele assistiu a um dos primeiros eventos "Hora de Codificar" patrocinados pela MV Gate com sua mãe, Karen Meezan, presidente da associação local de pais e mestres e ex-executiva do setor tecnológico, mas hoje gerente de uma imobiliária. Karen faz parte dos defensores entusiasmados dos cursos de codificação, ao lado de vários diretores de escolas locais.
Ela contou que seu filho tem bom aproveitamento, mas não tinha encontrado seu interesse especial e "não era o melhor corredor do playground".
Mas ele adora programar e passa ao menos uma hora por semana nos CodeKids, programas organizados pela MV Gate para depois do horário escolar.
James, 8, explicou que programar é "conseguir que o computador faça alguma coisa sozinho" e disse que é divertido. Sua mãe falou que, quando se trata de programação, "ele é o melhor corredor".
Sammy Smith, 10,, estava absorta no evento em Mill Valley, movendo blocos de comandos básicos para levar o Angry Bird até a presa e brincando com comandos mais complexos, como "repetir", aprendendo sobre afirmações do tipo "se então".
O uso dos blocos de comandos em palavras para simplificar a lógica de codificação vem em grande medida do trabalho do Laboratório de Mídia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que em 2007 introduziu a linguagem de programação visual Scratch. A linguagem tem milhões de usuários, mas a maioria vem de fora das escolas.
Em 2013 chegou a Code.org, que emprestou ideias do Scratch e procurou difundir o conceito entre escolas e educadores.
Para Hadi Partovi, fundador da Code.org e ex-executivo da Microsoft, a programação de computadores deveria ser ensinada em todas as escolas. Ele a descreveu como sendo tão essencial quanto "aprender sobre a gravidade ou moléculas, eletricidade ou a fotossíntese".
Entre os 20 mil professores que, segundo a Code.org, já se inscreveram no programa está Alana Aaron, professora de matemática e ciência.Ela trocou dois meses de aulas de ciências naturais pela programação.
"A ciência da computação é superimportante. Se meus alunos não forem apresentados a isso, podem perder oportunidades profissionais potenciais." NYT, 20.05.14

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Skate na escola

Este momento, em que migramos para a educação em tempo integral, é propício para exigirmos dedicação do tempo extra a atividades práticas
Não concordo, mas respondi como o professor queria. Vou estudar na véspera, pois há muito a decorar e não quero esquecer. Tenho que fazer uma pesquisa: copiar trechos da Wikipédia. Qual é o afluente esquerdo do rio Solimões em Tefé? A barata é um artrópode? Quais as leis de Newton, segundo a apostila? O avião cai como uma pedra, sem atrito?
O Brasil vai mal em educação, segundo pensadores e os resultados de exames nacionais e mundiais. As frases acima, comuns entre nós, denunciam um ensino à base de memorização e acúmulo de definições.
A maioria dos adultos é analfabeto funcional. Matemática e lógica passam ao largo da educação. Nosso extenso programa escolar, combinado com o método em que o mestre dita e o aluno copia, resulta, quando muito, na acumulação de definições rasas. O aluno é passivo e pouco questiona ou aprofunda as ideias transmitidas. A experimentação ou observação da natureza é praticamente inexistente.
Imagine uma escola onde, em biologia, usa-se microscópio, observam-se células se dividindo e bactérias proliferando, e fazem-se perguntas cada vez mais profundas sobre esses processos até se chegar à resposta "A ciência atual não sabe, mas é tema de pesquisa atual".
Nessa escola, em física, disparam-se foguetes d'água, observa-se e questiona-se a areia da praia ficar mais escura ao encher d'água, experimenta-se a inércia com uma bola em cima de um skate fazendo curva. O objetivo maior do português é ler com prazer e comunicar e escrever de maneira clara.
Em vez de nomes de afluentes de rios, discute-se a importância deles para o florescimento de uma civilização e suas implicações modernas na questão da poluição, ambiente e qualidade de vida. História não é gravar data e nome da serra que Fidel Castro tomou, mas estudos em grupo para, ao longo de várias aulas, relatarem-se "fatos" históricos e atuais, discutindo-se avanços e atrasos, com menos ideologia e mais observação de dados.
Experimenta-se, observa-se e questiona-se de maneira mais profunda fenômenos naturais e sociais; pratica-se música, esporte, culinária, marcenaria, costura, primeiros socorros, instalações elétricas, software, robôs, eletrônica. O ensino não é voltado a uma prova --vestibular ou Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), sua versão melhorada, mas sim à vida.
A crítica arrasadora de um prêmio Nobel de Física sobre o ensino brasileiro em 1950, em "O Senhor Está Brincando, Sr. Feynman?", continua atual. Mesmo a maioria de nossas escolas privadas e de elite se volta para a preparação de uma prova.
Desperdiçamos vida, recursos e cérebros com essa escola maçante e alienada. Albert Einstein, em "Ideas and Opinions" ("Ideias e Opiniões"), expõe a questão do exercitar cérebros: o estudante é o protagonista no aprendizado e o professor aquele que incita e orienta esse processo.
Cabe às nossas universidades, com docentes pesquisadores, formar esse "novo" professor. Mas para atrair boas mentes para essa carreira, cabe à sociedade valorizá-la. (Minha campanha é para que o salário do vereador seja limitado ao do professor primário, figura muito mais relevante à sociedade). Com essa nova escola, ganharemos uma enorme produtividade em todos os ramos. Cidadãos capazes de observar e questionar mudarão a face da nossa lei e política e veremos valorização da vida. O chavão inovação pode virar realidade significativa.
Felizmente, há discussões na academia inspiradas nos projetos "mão na massa" dos laureados L. Lederman e G. Charpak e ações governamentais embrionárias nesse sentido. Tudo isso é bem antigo, dito e repetido, mas pouco praticado.
Este momento, em que Estados e municípios migram para a educação em tempo integral, é propício para exigirmos dedicação do tempo extra a atividades práticas.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

OPÇÕES DOS EUA À AÇÃO AFIRMATIVA

1) Os 10% de melhor desempenho

Os 10% de alunos com melhores notas de cada escola do ensino médio têm acesso assegurado à universidade. Programa começou no Texas e foi adotado por instituições na Flórida e na Califórnia


2) Primeira Geração
Oferece incentivos, como bolsas de estudo, a alunos cujos pais não têm curso superior. A iniciativa mais conhecida está na Flórida


3) 20 Talentosos
Também na Flórida, prevê para os 20% dos alunos do ensino público com melhores notas acesso às universidades públicas estaduais


4) Fatores socioeconômicos
Algumas universidades usam como critério de admissão histórico familiar, situação socioeconômica, região de origem, status de refugiado e deficiências físicas, entre outras. As vagas reservadas variam em cada instituição. Folha, 24.04.2014.

EUA debatem modelo de acesso universitário: Universidades discutem substituir políticas de ação afirmativa baseadas em raça por critérios socioeconômicos

Decisão da Suprema Corte deve dar impulso à busca por novos modelos de seleção de candidatos a instituições superiores
FABIANO MAISONNAVEDE SÃO PAULO
A decisão da Suprema Corte dos EUA de manter o veto do critério racial para ingresso nas universidades do Estado do Michigan tende a acelerar a adoção de políticas alternativas de ação afirmativa já implantadas em algumas universidades, como a que privilegia alunos cujos pais não têm curso superior.
"As ações afirmativas baseadas em raça nos EUA são legal e politicamente vulneráveis", disse à Folha Halley Potter, do centro de estudos Century Foundation, sediado em Washington.
"Legalmente, as políticas públicas são submetidas ao mais restritivo padrão de revisão legal, o escrutínio estrito'. Politicamente, as preferências raciais são muitas vezes impopulares na opinião pública e entre os representantes eleitos", completou.
Potter é coautora do estudo "A Better Affirmative Action" (uma melhor ação afirmativa), que demonstra que sete de dez importantes universidades públicas conseguiram manter e até aumentar proporção de alunos negros e latinos depois da substituição de critérios raciais por outros socioeconômicos.
Um levantamento semelhante publicado ontem pelo jornal "New York Times" traz resultados diferentes: de cinco Estados que baniram o critério racial, em quatro houve queda percentual de alunos negros e latinos.
Em Michigan, onde o fim do critério racial foi aprovado por 58% dos eleitores em referendo em 2006 --decisão mantida pela Suprema Corte anteontem--, o percentual de novos alunos negros caiu 25% nas universidades e faculdades públicas estaduais, apesar da adoção de novos critérios socioeconômicos.
Desde 1996 até hoje, oito Estados aboliram o fator racial na admissão de universidades, entre os quais a Califórnia e a Flórida. Juntos, reúnem 29% dos estudantes de ensino médio do país.
Nos EUA, os programas de ação afirmativa universitários baseados em raça começaram há quase meio século. Nesse período, houve mudanças importantes, como a proibição de cotas raciais pela Suprema Corte, em 1978.
EDUCAÇÃO FAMILIAR
Uma das experiências que mais têm chamado a atenção são os programas Primeira Geração, em que o estudante cujos pais não possuem curso superior tem a acesso a uma série de incentivos.
"Os programas mais eficientes de primeira geração combinam recrutamento com apoio financeiro", diz Potter.
"A Universidade da Flórida, por exemplo, tem um programa impressionante para incluir alunos de primeira geração e baixa renda, oferecendo bolsas integrais. Esse programa tem ajudado a universidade a ter um corpo discente com um diversidade racial e socioeconômica."
O Estado da Flórida, onde o critério racial foi banido em 2001, vem tendo resultados melhores do que a média.
De acordo com o levantamento do "Times", as duas universidades mais importantes do Estado mantêm o mesmo número de universitários hispânicos desde que o critério racial foi abolido.
No Texas, onde o fator racial foi abandonado há mais tempo, a principal alternativa é o programa "Os 10% de Melhor Desempenho", no qual os alunos com as notas mais altas de todas as escolas de ensino médio do Esado têm vaga assegurada na universidade.
Apesar de a experiência ter sido copiada por outros Estados, o número de universitários negros e latinos no Texas vem caindo desde então, ainda de acordo com o "Times".
Em 2005, a Universidade do Texas voltou a levar o fator racial em consideração. Folha, 24.04.2014.


terça-feira, 8 de abril de 2014

A escola daqui a 10 anos: Se o mundo fosse igual daqui a 10 anos, aí faria sentido o nosso esforço para a escola continuar da mesma maneira

ROSELY SAYÃO
E se daqui a 10 anos a vida fosse muito parecida com a que vivemos hoje?
Se, por exemplo, o mercado de trabalho funcionasse como o conhecemos: com a oferta de empregos em empresas que teriam carga horária semanal predeterminada e horários de entrada e saída idem --com alguma flexibilidade-- e com a possibilidade de horas extras de trabalho para os funcionários darem conta das tarefas exigidas?
Se, nessas empresas, os trabalhos exigissem uma formação acadêmica específica e as tarefas em equipe fossem realizadas como têm sido frequentemente hoje, ou seja, com um chefe --ou líder, como gostam de nomear as corporações que se pretendem inovadoras, mas que age como chefe mesmo, organizando sua equipe, cobrando e dividindo o trabalho entre os integrantes dos setores de modo que os resultados sejam parecidos com um "Frankenstein", como é feito hoje?
Se os conhecimentos mais valorizados nos empregos fossem prioritariamente os técnicos e os especializados, adquiridos nas escolas, e se o acervo cultural das pessoas não fosse sequer averiguado, como hoje acontece?
E os cursos universitários? Seriam os mesmos de hoje, com pequenas variações, mas com funcionamentos tradicionais e direcionados a um mercado já estabelecido e estável.
E a tecnologia? Claro que esperamos que ela avance ainda mais, mas os aparelhos continuariam os mesmos, a maneiras de utilizá-los também, com uma pequena novidade a cada novo modelo. Exatamente como acontece, em geral, hoje.
Ah! E o uso da criatividade em qualquer função profissional? Seria como hoje, ou seja, um discurso interessante e estimulante que, na prática, cede espaço ao tradicional e ao conhecido.
Se o mundo, daqui a uns 10 anos, fosse exatamente assim, aí faria sentido todo nosso esforço para que a escola brasileira continuasse funcionando da mesma maneira.
Faria sentido, por exemplo, que os pais que têm recursos suficientes investissem tudo o que podem --e às vezes até o que não podem-- para colocar o filho em uma escola considerada forte a fim de assegurar ao jovem uma boa colocação no vestibular concorrido de algumas poucas faculdades que oferecem cursos super tradicionais.
Se fosse assim, também faria muito sentido que valorizássemos tanto, no aprendizado escolar, a medição dos acertos que cada aluno é capaz de fazer nas provas. Da mesma maneira, também faria sentido valorizarmos o espírito competitivo com os outros que esse esquema de avaliação produz e entendermos que bom aluno é o que tira boas notas, independentemente do esforço que teve para tanto.
Se fosse assim, também faria sentido considerarmos irrelevante o fato de as escolas não valorizarem a brincadeira e o contato com a natureza na Educação Infantil, a prática para o aprendizado no ensino fundamental e a arte e a filosofia em todos os níveis de ensino.
Isso sem falar que também faria o maior sentido pouco nos importarmos, como agora, com o projeto de educação para a cidadania e a convivência respeitosa nas escolas.
Faria muito sentido também o fato de considerarmos de pouca importância o diálogo entre as escolas e as famílias dos alunos. Aqui, é bom lembrar que diálogo não significa, necessariamente, parceria.
Mas, pelo jeito, não será assim. Resta aos pais e à escola, portanto, torcerem para que o mundo permaneça igualzinho ao que é hoje.
Folha, 08.04.2014